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quinta-feira, 25 de junho de 2009

Mnemónicas Ornitológicas

…Era um final de tarde de Verão.

A avó descansava, sentada num saco cheio de batatas.

O dia tinha sido longo. Desde manhã cedo que ela e os seus três netos apanhavam as batatas que o pai e o avô arrancaram da terra com a enxada.

Agora era altura de carregar os sacos para o reboque do tractor que o pai e o avô tinham ido buscar a casa. Por isso, restava esperar que eles chegassem, aproveitando para algumas brincadeiras e zaragatas que o momento proporcionava.

De repente a avó exclamou:

– Olhem! Lá está o paspalhão!

– Paspalhão!? Aquilo é uma codorniz! Diz o neto mais novo.

– Não é nada! Responde a avó.

– Então não percebes o que ele diz?

– "Eu-eu, eu-eu, eu-eu! Paspalhão! Paspalhão! Paspalhão!" Oh tomem lá atenção!

Espantados, os netos deliciaram-se com as palavras da avó, reproduzindo o canto da codorniz, enquanto esta continuava a cantar espaçadamente, em intervalos regulares, à espera de atrair uma fêmea…

Este é apenas um exemplo das mnemónicas populares que reproduzem os cantos de algumas aves e da forma como têm passado de pais para filhos… ou de avós para netos... ao longo dos tempos.

Obviamente provenientes dos meios rurais, contextualizam quase sempre temáticas agrícolas e/ou religiosas. Estas expressões assentam na fonética auditiva das palavras e nem sempre é fácil reconhecer a associação, entre as palavras e o canto, que estas pretendem reproduzir.

A grande variedade de cantos que uma espécie é capaz de emitir, poderá confundir-nos e dificultar a identificação do(s) canto(s) que a mnemónica pretende reproduzir. Como é o caso do Chapim-real (Parus major).

Além disso é necessário dar a entoação correcta às frases. Tarefa que será mais fácil para aqueles que, sendo conhecedores dos cantos das aves, tenham também alguns dotes musicais!


Codorniz (Coturnix coturnix)

"...Eu-eu, eu-eu, eu-eu,

Paspalhão! Paspalhão! Paspalhão!…"

No caso da codorniz, a maioria das vezes não é possível aperceber-mo-nos da primeira parte do canto, pois é menos audível que a segunda. No entanto, com as novas tecnologias, hoje é fácil termos acesso a várias gravações de som e imagem, disponíveis on-line(1), onde será possível aperceber-mo-nos destas duas vocalizações distintas.

Há inclusive indivíduos que vocalizam apenas sons correspondentes à primeira parte do canto ("...eu-eu, eu-eu, eu-eu..."). Talvez este facto esteja directamente relacionado com indivíduos imaturos.

Outros reproduzem uma única vez o som dissílabo da primeira parte, antes de entoarem a segunda. Ou seja, é necessário ter em conta que o número de vocalizações, do mesmo som, que compõem um canto varia de indivíduo para indivíduo.


Chapim-real (Parus major)

1. "Semeia-milho, semeia-milho, semeia-milho, semeia-milho!"

2. "Trigo, semeia-trigo, semeia-trigo, semeia-trigo!"

O Chapim-real é uma das aves mais difíceis de relacionar as mnemónicas devido à sua grande diversidade de cantos. Para além de que nem todos os espécimes apresentam o mesmo repertório.

No entanto, das duas apresentadas, a primeira é relativamente fácil de identificar no canto desta ave.

Sendo esta mnemónica recolhida na zona de Alcobaça, onde as pessoas do campo chamam habitualmente "Ferreiro" ao Chapim-real (talvez por o seu chamamento se assemelhar a dois ferros a bater um no outro), esta faz referência ao nome vernáculo "Semeia-milho"(2), possivelmente proveniente de outra região.

Aproveitando este exemplo, convém salientar que, algumas destas mnemónicas, fazem referência a nomes vernáculos da espécie que representam. Podendo, tal como estes, apresentar variações de região para região.

Da mesma forma que, em alguns casos, os nomes vernáculos são, eles próprios, mnemónicas ao canto da espécie correspondente.


Rouxinol-comum (Luscinia megarhynchos)

"...Nossa Senhora diiisse, diiisse, diiisse, disse,

Que enquanto o guião da parreira subisse,

Que não dormisse, que não dormisse, que não dormisse!"

Esta será, talvez, a mnemónica mais conhecida, ou pelo menos a mais difundida das que aqui são apresentadas.

É um exemplo em que o contexto, simultaneamente, religioso e agrícola fundamentam um comportamento do Rouxinol (cantar tanto de dia como de noite).

Chegando habitualmente em Março, altura em que as videiras começam a despontar as suas parras e guias, Nossa Senhora ter-lhe-á ordenado que cantasse de noite e de dia… talvez como "motivação" para a videira, proporcionando-lhe um crescimento saudável e produtivo!?

Ao relacionarmos esta mnemónica com o canto da ave teremos de ter em conta que nem todos os Rouxinóis cantam a mesma sequência de notas e "frases". A maior ou menor complexidade do canto poderá depender, entre outros factores, da idade de cada indivíduo. Assim, espécimes mais velhos terão, à partida, cantos mais elaborados.


Papa-figos (Oriolus oriolus)

"...já o engoliu!... já o engoliu!...já o engoliu!..."

Assentando também na fonética auditiva esta mnemónica reforça o nome comum da ave, referindo-se o artigo definido "o" ao "figo".

De todos os nomes vernáculos desta espécie o "Tiroliro"(3) destaca-se dos restantes por, de certo modo, fazer uma analogia com o canto aflautado e de notas ligadas, característico da espécie.

Sendo uma ave bastante discreta é mais vezes ouvido do que visto, cantando quase sempre escondido entre os ramos, onde facilmente se confunde com os verdes amarelados das folhas iluminadas pelo sol.


Trigueirão (Miliaria calandra)

"...Eeeh'na tem tanta raizzzzz!..."

À semelhança do Chapim-real, verifica-se também aqui um contexto agrícola. A frase refere-se à prática comum de arrancar plantas pela raiz, neste caso enfatizando o espanto, perante o raizame exagerado de uma delas.

Mais uma vez podemos encontrar alguns nomes vernáculos que, com alguma facilidade, também nos sugerem o canto do Trigueirão: "Tem-te-na-raiz", "Tentarraiz", "Tintarraiz" ou "Trinta-raízes"(4).


Tentilhão-comum (Fringilla coelebs)

"...Tem – tem - tem-tem qualquer coisinha pr'ó São Sebastião?"

Por último, e mais uma vez de contextualização religiosa, fica a mnemónica que talvez se possa considerar a mais difícil de reproduzir.

Pode também ser avaliada como a que melhor representa um canto de uma ave. Embora esta avaliação seja um pouco subjectiva, depende sobretudo da forma como cada um interpreta uma mesma mnemónica.

Para ajudar à reprodução da mnemónica do Tentilhão-comum, imaginemos um gago a pedir uma esmola para o São Sebastião!

Esta deverá ser reproduzida de forma inicialmente espaçada e acelerando até ao último "tem", mantendo a aceleração até ao fim da frase.

Deste modo consegue-se uma referência quase perfeita a um dos vários cantos desta ave.

Estas são apenas algumas de, quem sabe, muitas outras mnemónicas de cantos de aves espalhadas pelo nosso país. Principalmente pelas áreas rurais e por pessoas que, a estas estiveram ligadas, em algum momento das suas vidas.

Fazem parte da nossa cultura, da cultura popular, e representam o conhecimento empírico que as populações têm, ou tiveram, sobre as aves que ocorrem no nosso território.

A tendência natural é para que se perca este conhecimento à medida que as gerações mais velhas forem desaparecendo, sem que se tenha transmitido às gerações mais jovens.

Fica aqui o testemunho de algumas delas, pelo menos as que foi possível reunir... até ao momento!


1) http://www.rspb.org.uk/wildlife/birdguide/name/q/quail/index.asp#

http://www.youtube.com/watch?v=8Kl3idJwW1w

2) in COSTA, H.; ARAÚJO, A.; FARINHA, J. C.; POÇAS, M. C. e MACHADO, A. M. / Nomes Portugueses das Aves do Paleárctico Ocidental/ Assírio & Alvim/ 2000/ p. 159

3) in COSTA, H.; ARAÚJO, A.; FARINHA, J. C.; POÇAS, M. C. e MACHADO, A. M. / Nomes Portugueses das Aves do Paleárctico Ocidental/ Assírio & Alvim/ 2000/ p. 158

4) in COSTA, H.; ARAÚJO, A.; FARINHA, J. C.; POÇAS, M. C. e MACHADO, A. M. / Nomes Portugueses das Aves do Paleárctico Ocidental/ Assírio & Alvim/ 2000/ p. 155